O Vento dos Tempos e a Congruência

No último livro que escreveu, Eugene Peterson procurava um conceito que sintetizasse a sua abundante obra e que expressasse a sua intenção com essa publicação.  E chegou à palavra “congruência”. Esta palavra – que, em português, aponta para a coerência, a consistência e a harmonia – não seria, de fato, uma mera palavra-chave a expressar a natureza de sua obra literária, mas um símbolo da própria caminhada cristã, como ele mesmo expressa: “A vida cristã é a prática atenta e cuidadosa dos detalhes da congruência por toda uma vida. Congruência entre os meios e os fins, congruência entre aquilo que fazemos e a forma como o fazemos, congruência entre o que está escrito nas Escrituras e a forma como vivenciamos o que está escrito.

A fé cristã tem na congruência um dos seus pontos fundamentais, pois ela atesta a beleza de uma vida que denota sintonia entre quem se é, o que se sabe e o que se faz. Assim a vida, em sua expressão individual, familiar e coletiva, torna-se um todo coerente e integrado. O desafio e o convite para a congruência encontram na Trindade, onde Pai, Filho e Espírito Santo são um, o seu modelo e a sua inspiração. A modelação da congruência é revestida de uma natureza testemunhal e a própria sociedade passa a ser cativada para um estilo de vida onde a verdade supera a mentira, a transparência vence o jogo do esconde-esconde e a realidade suplanta a performance que busca editar e esconder o que é real.

O contrário da congruência é a incoerência, a contradição e a discrepância entre o que se diz e o que se vive. Quando se passa da congruência para a incongruência o que se colhe é a desintegração da vida e à desconstrução do tecido social e o outro passa a ser objetificado e explorado. No mundo da incongruência a casa cai – por dentro e por fora.

O Sermão do Monte é uma grande conversa sobre a congruência nas várias áreas da vida. Uma das suas clássicas passagens é a história do prudente e do insensato, da casa que cai e da casa que fica de pé. Nesta história a integração harmoniosa entre palavra e ação, entre o que se diz e o que se vive, não acontece por si só nem subsiste em si mesma, mas depende da palavra do próprio Jesus. É a palavra dele que requer essa integração; mas é também ela que a possibilita, num gracioso convite a viver uma vida transparente e, portanto, confiável e agradável.

Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha. Mas quem ouve estas minhas palavras e não as pratica é como um insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua queda. (Mt 7:24-27)

Jesus provê um norte para que a vida encontre espaço e floresça numa sociedade mais saudável, com uma cidadania mais transparente e onde as instituições sejam mais verdadeiras e confiáveis.

O vento do tempos

Os “últimos anos” tem sido tensos. A crise política parece um poço sem fundo, a crise econômica esvazia a mesa e a esperança dos mais vulneráveis, e a raivosa polarização da sociedade nos torna agressivos, machucados e até paralisados. Ainda que este não seja um fenômeno apenas brasileiro, nós o experimentamos aqui em sua força destruidora. Ele é alimentado por uma profunda ruptura entre o fato e sua interpretação, entre a verdade e o que foi rapidamente divulgado como tal através da demoníaca fake news, onde tudo vale, nada se verifica e vítimas incontáveis se veem destruídas e imobilizadas. Em seu livro Age of Anger (Idade da Raiva) Pankaj Mishra afirma que “em nenhum outro lugar a evidência da miséria moral se acumula com tanta rapidez como na esfera pública”; e aponta para a “encarnação digital”, na qual os mais variados grupos e vozes, muitas vezes escondidos no anonimato, fabricam teorias e divulgam mentiras tantas vezes ao ponto de gerarem credibilidade, ainda que ao custo de muitas vítimas.

Todos nós estamos vivenciando a miséria moral e essa “encarnação digital” que fragiliza e conflitua as relações. A pergunta que não deve calar é se isso foi diferente em nossas igrejas ou se experimentamos, simplesmente, um pouco mais do mesmo. A resposta a esta pergunta certamente não é única, mas ela precisa passar pelo teste da congruência. Uma congruência que ateste a manifestação do fruto do Espírito, expresso em amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio (Gl 5:22-23) em nossas vidas e comunidades. Temo que estejamos em dívida com a nossa sociedade, tão carente de casas que permaneçam em pé e resistam aos ventos e às tempestades dos nossos dias.

Nas Garras do Leão! – Márcio Trindade

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Márcio Trindade é Pastor Batista a mais de 20 anos, casado com Vania e pai da Naara, Maressa e Levi. Licenciado em História, Bacharel, Pós-Graduado e Mestre em Teologia com ênfase em Releitura, Interpretação e Exposição Bíblica, pelas Faculdades Batistas do Paraná e Seminário Bíblico Palavra da Vida. Amante da Pregação Bíblica, Simples e Pura da Palavra de Deus. Acima de tudo, Servo do Senhor!